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"Todas as coisas são lícitas, mas nem todas convêm." (1 Coríntios 10:23a)

transeuntes.

quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Páginas de um romance particular.


Ao seu redor várias pessoas, homens e mulheres em trajes elegantes. Ela era uma moça esguia, rosto pueril, vestia um vestido azul marinho e sapatos com salto mediano, a única coisa que demonstrava ainda haver entusiasmo para a vida naquele instante eram seus brincos de madrepérola. O sol da tarde escaldava seu rosto não muito pálido, sua cor era um negro avermelhado, seus cabelos presos num coque mostravam a reserva da sua vida, sua pseudomoralidade. Ao seu lado andando a passos lentos ele a olhava atônito, caminharam mais ou menos meia hora até chegarem ao destino. Dois homens empurravam um carrinho com um pequenino caixão em cima. Ela não derramou um lágrima. Estava embreagada pelos seus mais íntimos pensamentos. O silêncio fez-se constante durante todo trajeto.

O mesmo homem não parava de contemplá-la, ela estava exultante não demonstrava se quer um pingo de dor. A dor que sentia era menor que o desejo de enterrá-las. Era um cortejo, um cortejo fúnebre, mesmo assim ela se sentia em paz, sepultaria naquele dia todos os seus rancores e lembranças inutilizáveis. De longe ela via os túmulos por entre túmulos parecendo que dançavam nas labaredas de uma fogueira por causa do sol forte demais. Lembrava-se de tudo que passou e decidiu que não mais choraria, absteve-se de qualquer impulso contrário ao seu desejo. Lembrou-se que até aquele momento havia se negligenciado e não queria mais protelar a situação de se salvar.

Chegaram ao local, no jazigo a cova onde desceria o caixão, ela parou e olhou, todos continuavam ali ao redor do buraco no chão, inclusive o homem que a contemplava. Ele era alto, robusto, porte físico invejável, cabelos crespos bem cortados, pele retinta, vestia um pomposo terno riscado e um chapéu preto de lado. Ele era sua mais nova paixão. Talvez esse seja mais um dos motivos para tomar tal decisão, para se livrar, enterrar o passado e deixar que uma nova flor florescesse em seu coração. A cova não era muito grande, mas ali cabia o que era pra ser enterrado. Ela fechou os olhos e por mais alguns instantes mergulhou em seus pensamentos, possivelmente estava fazendo uma prece ao defunto, pedindo à Deus bonança e também agradecendo por estar ali fazendo o que deveria ser feito.

Pediu a um dos homens que abrisse o pequeno caixão, fitou todos os objetos de relance e com certa imparcialidade, pois, já sabia que estavam lá, o caixão fora meticulosamente preparado e ela não esquecerá nada, tinha total certeza. Foi fechado novamente.

Havia no caixãozinho alguns pertences, cartas de amor de amores passados e bilhetes escritos a próprio punho pela moça e outros com caligrafias diversas, pequenas lembranças de sua vida, pequenezas que fora presentada por outras pessoas que passaram por seus quase trinta anos de existência, nenhum daqueles objetos lhe eram inalienáveis. Entre estes haviam também cartas escritas por ela recentemente expressando em palavras tudo que não mais queria para si. Enquanto todos aqueles objetos estavam em seu poder, ela nunca parara de remoer o passado fazendo do presente um pesadelo terrível, reproduzindo tudo que já viverá com ações ou com palavras, não deixando que seus sonhos e objetivos se concretizassem de maneira natural. Era sempre impelida por laivos do passado afastando assim as pessoas que a amavam ou que por eventualidade poderiam vir a amá-la. Ela poderia desfalecer caso não matasse suas lembranças.

Foi um ato simbólico não uma metáfora, entendam. Ali naquele caixão ela depositara todas as coisas que a impediam de viver com alegria, quis com esse ato demonstrar que estava tudo sendo morto e enterrado e daquele momento em diante abria espaço para uma nova vida, onde os sofismas, os sentimentos hostis e dos quais se tornara subserviente não mais existiriam.

O caixão desceu a cova, durante o sepultamento nenhuma lágrima. Conforme a terra caía sobre ele um certo excitamento lhe tomava conta, suas mãos estavam suando num misto de prazer e euforia. Alguns perceberam tamanho era seu sentimento de libertação e sorriam com o canto da boca. Ao fim do enterro todos os presentes lhe parabenizaram com apertos de mãos e abraços solicitos e ninguém lhe indagou os pesâmes, era isso que ela queria. Pegou sua echarpe florida de dentro de uma pequena bolsa que segurou a todo momento durante o cortejo, soltou seus cabelos e amarrou-os com ela. O brilho dos seus olhos refletiam alegria, enfim se libertara. Na lápide os dizeres eram assim: "aqui jaz todos os sentimentos e lembranças que outrora me fizeram lutar contra mim mesmo *02/09/1982 +01/01/2010". O homem beijou-lhe a testa, a tomou pelos braços e caminharam pelo mesmo caminho de volta, sentia-se aliviada e pronta talvez como nunca houvesse se sentido.

6 comentários:

Vanessa Souza disse...

Que bonito!

Beijão.

GIL ROSZA disse...

hummm... ce sabe temperar bem a coisa hein? ta na medida. pra mim isso é originalidade. inclusive pra botar titulos.

quiz brisas. disse...

está tudo morto e enterrado!

feliz ano novo!
é nóis em 2010.

Jeferson Cardoso disse...

Bem, primeiramente tive duvidas se o homem que a fitava fosse apenas um estranho que por acaso ali também estivesse.
Quanto ao caixão eu caminhei na duvida se tratava de uma criança mal amada, fruto de um desamor ou um homem de pouca estatura, também não amado.

Li tudo e acho que conquistei o direito de fazer algumas perguntas (sorrio):
É seu o texto? - Achei delicioso.
Se seu, é autobiográfico, certo?

Abraço: Jefhcardoso (lhe aguardando em meu blog)

Camilla Dias Domingues disse...

Jefh...

o homem que a fitava era o seu mais novo amor e não um estranho.

o texto é meu saído da minha própria cabecinha, rsrs!

não é auto-biográfico mas tem muito de mim como tudo que escrevo, pois, acredito que até quando se escreve ficção há muito do subjetivo do autor por mais que muitos neguem dizendo que é apenas uma estória.

bom que tenha gostado. abraço.

Jeferson Cardoso disse...

Camilla, o texto é fantástico e sua cabeça muito produtiva. Parabéns!
Queira por gentileza avisar sempre que criar. Terei grande prazer em vir admirar.
Quanto ao comentário, ah, não valeu. Você comentou no blog de minha turma de futebol e de meus desabafos esportivos. Gosto deste blog, amo até, mas nada se compara com a minha relação íntima com o outro blog, o http://jefhcardoso.blogspot.com/. É nele que quero ter a honra de um comentário seu para a minha mais nova postagem.
Posso aguardar?

De qualquer maneira, abraço!